Friday, June 30, 2006

Desencanto

Untitled Photo by Yuri B

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue.
Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira

Thursday, June 29, 2006

A um pobre passarinho ...

Angelwings On The Water by Miguel

Fica mais um pouquinho,
Meus dedos serão teu ninho.

Palpitou-lhe o coração,
Feneceu na minha mão,
Sem hipótese de voar.

Agora maldigo o destino:
Traçou-te pouco caminho!
E eu sem voz pra te cantar ...

Dorme, dorme pequenino!
Adeus pobre passarinho....

Tuesday, June 27, 2006

O Poeta no Café de Província

Milky Way Coffee by Murrrzilka

(...)

II
Um fogacho, um lampejo
vale a pena provocá-los?
vale a pena estender os lábios para um beijo
inútil, que não gera?
Vale a pena estar à espera
não se sabe de quê,
sentindo frio, frio? ...

À mesa do café
o poeta escreve versos,
versos desmesuradamente compridos,
desmesuradamente sentidos,
estilísticamente certos ou incertos,
com rima ou sem rima (tanto faz ...)

— Eh, rapaz!
Um cálice de absinto
para imitar Verlaine e os poetas malditos.

(Mas cautelosamente...
Aqui não se toleram mitos!
Há ladrões! Fechem as casas!)

E a monotonia a armar o andaime...

— Vá, asas,
élitros
de insetos, pássaros ou anjos,
esvoaçai,
palpitai,
acordai-me!

Saul Dias

Monday, June 26, 2006

Soneto do Orfeu

From a series " Red and black " - On the eve... by Sergej Ryzhkov

São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida

E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Uma mulher que é feita de música
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento,
Tão cheia de pudor que vive nua.

Vinicius de Moraes

Tuesday, June 20, 2006

Há metafísica bastante em não pensar em nada

Light and Faith by Nuno Milheiro

(...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

Alberto Caeiro

Monday, June 19, 2006

Ninguém se pode Encarar a si Próprio até ao Fundo

Emptily and not audible..by Elena Vasileva

Ninguém pode com isto, ninguém pode encarar-se a si próprio e ver-se até ao fundo. A tua meticulosidade é de ferro, a tua meticulosidade está de tal maneira entranhada no teu ser que sem ela não existes. Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver! E tu sem o hábito não existes, nem tu sem o dever, nem tu sem a consciência. Sem estas palavras a vida não existe para ti, e sem escrúpulos que te resta? O que aí está é temeroso, seres estranhos, seres que, se dão mais um passo, nem eu nem tu podemos encarar com eles. Andam aqui interesses - e outra coisa. Com mil palavras diversas e ignóbeis, mil bocas que te empurram para a infâmia - outra coisa. Tens de confessá-lo. Não é a consciência - não é o remorso - não é o medo. É uma coisa inexplicável e imensa, profunda e imensa, que assiste a este espectáculo sem dizer palavra - e espera... És imundo, és a vida.


Raul Brandão, in 'Húmus'

Monday, June 12, 2006

O Palácio da Ventura

From the Past to the Present... by The Black Knight - Zeca

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas douro, ante meus ais!

Abrem-se as portas douro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão -- e nada mais!

Antero de Quental

Friday, June 09, 2006

De volta ao útero by Paulo César

**
Canto o meu fado:

Falo pouco,

Escrevo demasiado.

Thursday, June 08, 2006

À deriva

Unique and Special... by Silvia Marmori

Que água é esta que reflecte o tempo?
O olhar luminoso da minha infância …
Provo o teu sal,
Entro no teu mistério
Banho-me de transparência.
Oblíqua em todo o comprimento
Espelho o interior na minha superfície
Sou cristalina!
A frescura aquece-me por dentro
Descanso a cabeça para trás
Num sorriso
Num sorriso louco...
Flutuo, à deriva
Na magia do momento.

Wednesday, June 07, 2006

Perdi-me

[Mirror & The Soul] by Graça

Perdi-me
Dentro de mim
Porque eu era
Labirinto,


E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.


Mário de Sá-Carneiro

Tuesday, June 06, 2006

Amar

O Ponto by Rick X

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro

Friday, June 02, 2006

Sinto que o peito quer falar
Levanta o dedo no ar
Pedindo permissão!
Desvio o meu olhar
Mais uma vez
Calarás ...
Terás o castigo
Que te é merecido
Criança inquieta que
Tudo pede!

Don't Cry Anymore by The Black Knight - Zeca