Monday, June 19, 2006

Ninguém se pode Encarar a si Próprio até ao Fundo

Emptily and not audible..by Elena Vasileva

Ninguém pode com isto, ninguém pode encarar-se a si próprio e ver-se até ao fundo. A tua meticulosidade é de ferro, a tua meticulosidade está de tal maneira entranhada no teu ser que sem ela não existes. Pois até a tua meticulosidade se há-de dissolver! E tu sem o hábito não existes, nem tu sem o dever, nem tu sem a consciência. Sem estas palavras a vida não existe para ti, e sem escrúpulos que te resta? O que aí está é temeroso, seres estranhos, seres que, se dão mais um passo, nem eu nem tu podemos encarar com eles. Andam aqui interesses - e outra coisa. Com mil palavras diversas e ignóbeis, mil bocas que te empurram para a infâmia - outra coisa. Tens de confessá-lo. Não é a consciência - não é o remorso - não é o medo. É uma coisa inexplicável e imensa, profunda e imensa, que assiste a este espectáculo sem dizer palavra - e espera... És imundo, és a vida.


Raul Brandão, in 'Húmus'

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

"(...)
Agora estou nu e toda a mentira me é impossível; agora estou nu e todas as palavras são inúteis; agora estou nu diante da imensidade e não posso ao mesmo tempo com o céu e o inferno. Este momento trágico, esta pausa, este horror em que cada um se vê na sua essência, em que cada ser se encontra sós a sós com a sua própria alma, reduzido sem artifícios à sua própria alma, só tem outro a que se compare, aquele em que cada um vê a alma dos outros.
Porque, por melhor ou pior que tenhamos julgado os outros, vimo-los sempre através de nós mesmos.
(...)"

(in "HÚMUS", de RAUL BRANDÃO)

6:01 PM  
Blogger Lira said...

"(...)
Que há dentro deste ser, que não tem limites? Que há dentro deste ser de real e verdadeiro? Cada um assume proporções temerosas. Caem lá dentro palavras, sentimentos, sonho - é um poço sem fundo, que vai até à raiz da vida. À superfície todos nós nos conhecemos. Depois há outra camada, outra depois. Depois um bafo. Ninguém sabe do que é capaz, ninguém se conhece a si próprio quanto mais aos outros, e só à superfície ou lá para muito fundo é que nos tocamos todos como as árvores de uma floresta - no céu e no interior da terra. De mais baixo ainda vêm terrores, ânsias, desespero... A maior parte das criaturas não só se ignoram como não passam nunca da camada superficial.
(...)"

(in "HÚMUS", de Raul Brandão)

3:49 PM  

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