Tuesday, October 09, 2012

Fingir que está tudo bem

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga. 


José Luís Peixoto

Monday, October 10, 2011

Ausência


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícius de Moraes

Thursday, December 17, 2009


Cold by Tressie Davis

Friday, November 13, 2009

Fairyland by Stankina

Vem. Acompanha-me.
Este é a única viagem que
Nos é concedida.
Dou-te a mão,
Desçamos nas linhas
Suavemente,
Sem tropeçar.
Vês este regato,
Como é belo?
E estas folhas?.
Fetos, rendilhados… húmidos
Neste chão com cheiro a húmus
Queres uma romã?
Adoro os seus olhos doces.
Sinto o cheiro a praia molhada.
É a chuva que vem lá.
Abraço-te.
Está na hora de partir.

Tuesday, October 13, 2009

Quando tudo perece ...

Urban Poetry by Maureclaire Lejeune

.... só a poesia floresce.

Saturday, October 10, 2009

.

Storm Watcher by Nuno Milheiro

Acabo-me ...
Tentando adivinhar o sentido do que me move,
Rumo a trágicos e iminentes desfechos.

Porque tento com arrojo o abismo,
Cortejando a sua falésia
Que me entorpece?

Vontade suicida
de cerrar os olhos
e saltar?

Não sei se,
Inacabada,
Tenho pressa de acabar.
Se acabando,
Acabada,
Recomece…

Friday, May 22, 2009

This weekend, i'm going ...

Sense of Touch by Jennifer S.
... to do some soul washing!

Thursday, May 21, 2009

Before you (I) go ... II

And Bacchus you must be
Living liquid in my veins,
Rising fervently into the brain.
A mystic power crawling through me
Leaving me stray, searching for thee

Wednesday, May 20, 2009

Before you(I) go...

Can you hear the wind blow by Jordan Rusev

Let me tell you this one last thing
Because I linger in this string
Bouncing back and forth
From seeming stillness to inner roar.
Let me tell you this one last say
Before I let you go your way
And even though you’ll never know
The words will fall into this world.
I do endlessly think of you.
In a mad and insane stage
I see you like a madman would
In every street, in every wood,
In every face, in every place…
And Zephyrus is thy name
When he blows me back your hands
Flying smoothly across the lands
In an ethereal sweet embrace,
Touching my eyes wide shut face ...

Wednesday, April 22, 2009

Um dia qualquer ...

Lost time by Mialux

Um dia qualquer
daqui a muitos anos
perceberemos que estivemos juntos o tempo todo;
que fomos feitos um para o outro


e como somos parvos.

Lálica

Monday, November 17, 2008

Sara by Tomek Dyczewski
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinzas
e despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enovoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

Wednesday, October 22, 2008

Não me importo com as rimas

By Rita Silva

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...

Alberto Caeiro

Thursday, October 09, 2008

Veneno

Poetry by Sir Lawrence Alma-Tadema

a poesia envenenou-me
já não há mais tempo

a lua investirá com seus chifres
e as cebolas no escuro despertarão
o olho do coração
da cadeira
de balanço
a Paciência contempla a penugem dourada das horas
enquanto um gato dorme
sobre sua cabeça

uma tempestade de diamantes
arremessará suas flechas
sobre o Estreito de Magalhães

exatamente assim
passará um milênio

Ruy Proença

Friday, September 19, 2008

Escape from the Set ...


by Renato Manzi

Friday, August 22, 2008


«Sempre que salto, salto para o infinito»

Nélson Évora

Photo: Walking With Birds by Alex Caranfil

Wednesday, August 20, 2008

Da poesia


Jeune mere et enfant endormie, 1897 by Perrault Leon Jean Basile


Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno

e de tudo que apodrece.

Neide Archanjo

Thursday, June 12, 2008

Pierrot by Angela Vicedomini


ARLEQUIM:
Dize: Queres-me bem?
PIERROT:
Fala: gostas de mim?
COLOMBINA, hesitante:
Eu amo-te , Pierrot...... Desejo-te, Arlequim...
ARLEQUIM, soturnamente:
A vida é singular! Bem ridícula, em suma... Uma só, ama dois... e dois amam só uma!..
COLOMBINA , sorrindo e tomando ambos pela mão:
Não! Não me compreendeis... Ouvi, atentos, pois meu amor se compõe do amor dos dois... Hesitante, entre vós, o coração balança:
A Arlequim:
O teu beijo é tão quente...
A Pierrot:
O teu sonho é tão manso...
Pudesse eu repartir-me e encontrar a minha calma dando a Arlequim meu corpo e a
Pierrot a minh’alma! Quando tenho Arlequim, quero Pierrot tristonho, pois um dá-me o
prazer, o outro dá-me o sonho! Nessa duplicidade o amor todo se encerra: um me fala do
céu... outro fala da terra! Eu amo, porque amar é variar, e em verdade toda a razão do
amor está na variedade... Penso que morreria o desejo da gente, se Arlequim e Pierrot
fossem um ser somente, porque a história do amor pode escrever-se assim:
Um sonho de Pierrot...
E um beijo de Arlequim!

Menotti Del Picchia

Wednesday, June 11, 2008

Washout by Ron Skei


Fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.

A Criança Em Ruínas, de José Luís Peixoto

Tuesday, June 03, 2008

Sonhei contigo

Morning Fog May 1988 by Angela Bacon Kidwell

Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes tu, a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço -
terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
da fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.

Nuno Júdice

Tuesday, May 20, 2008

«Provavelmente toda a nossa vida é poesia. E todo o objectivo da nossa vida deve ser, quando acabasse, as pessoas dizerem: "Morreu um poema"»

Agostinho da Silva

In Requiem Figura II by Siro Anton

Monday, May 19, 2008

Inexistência ...

Space by Ana Yturralde




... de tempos mortos.

Friday, May 16, 2008

Artist Block by Ilja Hackman

Hoje nada me soa
Tudo me estranha
Escrevo e apago,
Grafo e anulo
Componho e elimino
Volto a escrever …
e a apagar …
Apago, já com força
Irritada
Azeda
Exasperada
Tudo me sabe a pouco
Nada me sabe a tudo
Quero mais,
Outra,
Diferente …
Não gosto, não é isto!
Não encontro em mim
A palavra
Que descreva o que em mim existe.
Imponho: Persiste!
Insiste …
Escrevo outra vez
Releio …
Replico!
Verifico que é vão apagar
Quando nada se disse.
E assim
se desiste…

Trompe-l'oeil


Escaping Criticism by Pere Borrell del Caso, 1874

Tuesday, May 13, 2008

Vontade de dormir

Sleep and his half brother Death by John William Waterhouse


Fios de oiro puxam por mim
a soerguer-me na poeira —
Cada um para seu fim,
Cada um para seu norte...

— Ai que saudade da morte...

Quero dormir... ancorar...

Arranquem-me esta grandeza!
— P’ra que me sonha a beleza
Se a não posso transmigrar?...

Mário de Sá-Carneiro

Monday, May 12, 2008

IV


Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?

Cecília de Meireles, in Cânticos
Photo: Fervently by Emily Bem

Thursday, April 24, 2008

Porque sim ...


Offering salutations to the rising sun in the Ganges at Varanasi by Sanjay Nanda

Wednesday, April 23, 2008


Tenho saudades de te ler
Sem te ver
Saudades de te ver
Sem te tocar
Saudades de te ler
à distância de um toque
de teclado, tic, click …
na segurança
por não ter que responder
Saber, sem aparecer …
Olhar, experimentar, sorrir, prever



no refúgio da minha janela...



Photo: Repunzel by Emily Bem

Monday, February 25, 2008

Silence by Petri Volanes

Wednesday, November 15, 2006

Enquanto a chuva cai


A chuva cai. O ar fica mole . . .
Indistinto . . . ambarino . . . gris . . .
E no monótono matiz
Da névoa enovelada bole
A folhagem como o bailar.

Torvelinhai, torrentes do ar!

Cantai, ó bátega chorosa,
As velhas árias funerais.
Minh'alma sofre e sonha e goza
À cantilena dos beirais.

Meu coração está sedento
De tão ardido pelo pranto.
Dai um brando acompanhamento
À canção do meu desencanto.

Volúpia dos abandonados . . .
Dos sós . . . — ouvir a água escorrer,
Lavando o tédio dos telhados
Que se sentem envelhecer . . .

Ó caro ruído embalador,
Terno como a canção das amas!
Canta as baladas que mais amas,
Para embalar a minha dor!

A chuva cai. A chuva aumenta.
Cai, benfazeja, a bom cair!
Contenta as árvores! Contenta
As sementes que vão abrir!

Eu te bendigo, água que inundas!
Ó água amiga das raízes,
Que na mudez das terras fundas
Às vezes são tão infelizes!

E eu te amo! Quer quando fustigas
Ao sopro mau dos vendavais
As grandes árvores antigas,
Quer quando mansamente cais.

É que na tua voz selvagem,
Voz de cortante, álgida mágoa,
Aprendi na cidade a ouvir
Como um eco que vem na aragem
A estrugir, rugir e mugir,
O lamento das quedas-d'água!

Manuel Bandeira

Photo: The Weather Maker by Alexey Biryukov

Monday, November 13, 2006

Lua Adversa


Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E toda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles

Photo: *** by Martin Zurmuehle

Monday, August 28, 2006

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa

Wednesday, August 02, 2006

Pérola Solta

Sem que eu a esperasse,
Rolou aquela lágrima
No frio e na aridez da minha face.
Rolou devagarinho...,
Até à minha boca abriu caminho.
Sede! o que eu tenho é sede!
Recolhi-a nos lábios e bebi-a.
Como numa parede
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,
Na boca me cantou,
Breve como essa lágrima,
Esta breve elegia.*

Lost Tear by The Black Knight - Zeca

*José Régio, Filho do Homem

Tuesday, August 01, 2006

E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros? É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes... um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia? Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura? E não somos todos mais ou menos sonhadores?

Fiodor Dostoievski

Existem sonhos ...

La Baigneuse by Perrault

... que nos despertam para os sonhos .

Monday, July 31, 2006

Epitáfio para um poeta

As asas não lhe cabem no caixão!
A farpela de luto não condiz
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
A gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Não vêem que ele, nu, faz mais figura,
Como uma pedra, ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
Ser-lhe-á conforto:
Deixem-no respirar ao menos morto!

José Régio, Filho do Homem

Onde Dormem Os Anjos by Luís Lobo Henriques

Thursday, July 27, 2006

Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno. *

Dante et Virgile au Enfers by William Bouguereau

*Antonin Artaud in Van Gogh, o Suicidado da Sociedade

Tuesday, July 25, 2006

A(mar)

Amar amarga

E na palavra está contido

Amar é amarelo

Um fogo vivo e belo

Amar é a maravilha

O mar no feminino …

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.


Mário Quintana

ev*&56644 by Elena Vasileva

Friday, July 21, 2006

O Vagabundo do Mar

Elogio aos Deuses Mais Loucos by Luís Lobo Henriques

Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré...

Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia...

Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?

Sei lá.

Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.

É, por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.

E agora,
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

Manuel da Fonseca

Wednesday, July 19, 2006

É ele! O sonhador!

Opening of a swimming season by Aleksandr Batura

Vagueia o poeta pelos campos: admira,
Adora; ouve dentro de si mesmo uma lira.
E ao vê-lo chegar, as flores, todas as flores,
As que dos rubis empalidecem as cores,
As que dos pavões deixam as caudas ofuscadas,
As florezinhas azuis, as florezinhas douradas
Tomam para o acolher, nos seus ramos agitados,
Arzinhos humildes, ou grandes ares afectados,
E, familiarmente, porque fica bem às belas:
«Olha! É o nosso amado que passa!», dizem elas.
E, cheias de luz e de sombra, com vozes inquietas,
As árvores gigantescas que vivem nas florestas,
Todas essas velhinhas, as tílias, os áceres, os teixos,
Os carvalhos venerandos, os enrugados freixos.
O olmo de negra ramagem, que o musgo entorpece,
Como os ulemas fazem quando o mufti aparece,
Saúdam-no com grandes vénias, curvando para a terra
As cabeças de folhagem e as suas barbas de hera,
E vendo na sua fronte um sereno esplendor,
Murmuram muito baixinho: É ele! O sonhador!

Victor Hugo

(traduzido por Maria Manuela Parreira da Silva)

Tuesday, July 18, 2006

Ainda Bouguereau ...

Le ravissement de Psyche By William Bouguereau 1825- 1905

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

Thursday, July 13, 2006

Se fosse assim tão simples ...

Jeune fille se defendant contre lamour by William Bouguereau

Tuesday, July 11, 2006

Reversus

I wait for you... by Shubina Olga

Todos temos um verso, uma canção
Gravado, cinzelado no coração.
Verso que arranha, de aresta viva
Que fere a entranha e prolonga a ferida.

Verso que rasga na imensidão.
Que corta aguçado na escuridão
Do túmulo fechado, onde jaz com vida
E assombra, agoniza como alma perdida.

Seu fado afiado é a catacumba,
Onde cativo clama, talhado em penumbra
Por não lhe esperar melhor sorte:

Se acaso irromper da lúgubre tumba
Fará com que a vida sucumba
Ao trespassar o ser... até à morte.

Wednesday, July 05, 2006

Poemas Tristes

The Poet by Jill Coleman

Às vezes poemas querem dizer tanta coisa
Outras não dizem nada
Querem transformar letras mortas
Em vida animada
Decompor frases tortas
Em palavra certa ou errada

Poesias são restos de sentimento
Cacos de liberdade ou coisa parecida
Fragmentos de dor e pensamento
Centelhas de emoção que querem ganhar vida.

Poetas são eternos sofredores
Podem ser mentirosos ou fingidores
Uns falam de alegrias outros de amores
Alguns tentam transformar o que está invisível
Em algo que tenha cores
E podem trazer a tona às lágrimas represadas
Do que se julga um insensível

Poemas podem falar de tudo
Ensinar a um cego o que é vazio
Põe palavras na boca de um mudo
Sopra frases aos ouvidos de um surdo

Mas eu gosto de escrever poemas tristes
Cada verso é uma batida do meu coração
As palavras são como reflexos do meu olhar
São lugares onde me perco para poder achar
A dor de viver aflora nas frases desse poema emoção

Se alguém algum dia quiser saber por onde andei
Ou quem eu fui
Que leia os meus versos
Porque foi neles onde fui mais feliz onde mais amei
Nos meus versos sou mais do que poderia ser
Quero aqui para sempre poder viver.

Ser poeta é transformar a própria vida em poesia
Os dias são os versos
As horas são as frases
As palavras são o agora

Ser poeta é viver amando o que não pode ser amado
É sentir saudade de algo que ainda não aconteceu
É chorar até a ultima lágrima
É sorrir até o ultimo sorriso

Todos nós somos poetas
Porque todos nós amamos
Uma partícula de mim está dentro de você
Eu e você no mesmo coração...

André Aquino

Monday, July 03, 2006

The Blue Fairy by Graça

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira

Friday, June 30, 2006

Desencanto

Untitled Photo by Yuri B

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue.
Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira

Thursday, June 29, 2006

A um pobre passarinho ...

Angelwings On The Water by Miguel

Fica mais um pouquinho,
Meus dedos serão teu ninho.

Palpitou-lhe o coração,
Feneceu na minha mão,
Sem hipótese de voar.

Agora maldigo o destino:
Traçou-te pouco caminho!
E eu sem voz pra te cantar ...

Dorme, dorme pequenino!
Adeus pobre passarinho....

Tuesday, June 27, 2006

O Poeta no Café de Província

Milky Way Coffee by Murrrzilka

(...)

II
Um fogacho, um lampejo
vale a pena provocá-los?
vale a pena estender os lábios para um beijo
inútil, que não gera?
Vale a pena estar à espera
não se sabe de quê,
sentindo frio, frio? ...

À mesa do café
o poeta escreve versos,
versos desmesuradamente compridos,
desmesuradamente sentidos,
estilísticamente certos ou incertos,
com rima ou sem rima (tanto faz ...)

— Eh, rapaz!
Um cálice de absinto
para imitar Verlaine e os poetas malditos.

(Mas cautelosamente...
Aqui não se toleram mitos!
Há ladrões! Fechem as casas!)

E a monotonia a armar o andaime...

— Vá, asas,
élitros
de insetos, pássaros ou anjos,
esvoaçai,
palpitai,
acordai-me!

Saul Dias

Monday, June 26, 2006

Soneto do Orfeu

From a series " Red and black " - On the eve... by Sergej Ryzhkov

São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida

E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Uma mulher que é feita de música
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento,
Tão cheia de pudor que vive nua.

Vinicius de Moraes

Tuesday, June 20, 2006

Há metafísica bastante em não pensar em nada

Light and Faith by Nuno Milheiro

(...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

Alberto Caeiro